domingo, 27 de novembro de 2011

FADISTA MEIRELES



Dei por mim a pensar: será que o povo da Internet só vê grandes filmes e lê grandes livros e ouve musicol do melhor? Ou será que acham que devem pôr no facebook e nos blogs só as coisas excelentíssimas que descobrem? E o fadista Meireles? Será que não gostam do fadista Meireles? Eu gosto do fadista Meireles. Ela canta e curte, sempre com o queixo levantadinho para a sua voz sair à maneira. As pessoas entram e saem da loja e ele canta. Alguém gosta de o ouvir, porque o moço tem uma energia própria (faz o que lhe apetece, tem prazer com isso e se os outros gostarem tanto melhor). Não sei como encontrei o fadista Meireles. Talvez eu não saiba procurar aquelas coisas excelentíssimas como deve ser. Se assim for, olhem, está aqui o (grande) fadista Meireles!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

OS FOTÓGRAFOS



Eles apostam na vida em diferido, porque o momento só existe enquanto arquivo que se pode salvar. A palavra é adequada – salvar – e se eles estão em todos os lugares é porque querem preservar o mundo que nos desaparece, pôr o que ainda vemos a salvo de nós. Num lugar seguro – sem fotógrafos e sem ninguém –, as imagens começarão outro universo, quase saudosas da sua humana origem. Os fotógrafos não são maus mas também não são bons. São como sacos de plástico que trazemos cheios de compras quando vamos ao supermercado. A essência dos sacos é ser continente, ou seja, o seu conteúdo nunca é próprio ou íntimo, eles servem para conter outras coisas. Os fotógrafos enchem-se de coisas que não são eles nem a sua vida só para um dia, quando esta merda toda se transformar num esgoto fervente, poderem mandar para outro universo as fotografias todas que tiraram durante estes anos de intensa actividade. Deixemo-los fazerem o seu trabalho, praticarem a sua crença. Qualquer coisa é fotografável, e na verdade todos merecemos a salvação.

terça-feira, 22 de novembro de 2011


“O que eu acho interessante nos gurpos punk é que eles parecem ser absolutamente prisioneiros dos meios de expressão dominantes.[…] É nítido o quanto eles estão poluídos por imagens de cinema e televisão, o quanto incorporam uma certa representação do star system, do vedetismo, todo um ideal de ego.” (Guattari e Rolnik, Micropolítica – Cartografias do Desejo)

Isto não quer dizer que esforços individuais ou coletivos não possam funcionar como “vetores de revolução molecular” na subervsão da modelização da subjetividade capitalística, como o próprio Guattari admite. Desconfiar das boas intenções mas não totalmente indica o difícil ponto de equilíbrio instável entre consciência crítica (que muitas vezes redunda em passividade) e vontade de ativação do que nos resta de autonomia criativa. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

UM AMOR PORTUGUÊS


A mulher portuguesa não é feliz quando ama. Para ela, o amor não é lugar de felicidade: ser feliz é ser leve e ela entende que o amor deve ser pesado (não esqueçamos que as mulheres engordam enquanto estão grávidas e continuam a engordar depois de parirem, numa espécie de bonita tentativa para dotarem o seu amor do tamanho do mundo). Quando gosta de ti, a mulher portuguesa sofre. Vê como eu sofro por gostar tanto de ti, diz-nos então, com olhos que nos olham só porque já choraram tudo. Se nós nos rimos, apenas desajeitados para sofrer sem vontade, ela não se importa. És uma criança e ainda não aprendeste a amar, pensa então enquanto inclina a cabeça e une as pálpebras esta mulher; e agora é a tua vez de fazer alguma coisa. Pensas nas tragédias do teu país, ou de outro qualquer - não adianta. É quase um sorriso que te baila na cara, inoportuno e vândalo. O que fazer? Na verdade, acho que é importante não termos medo de estragar o sofrimento desta mulher, tratando-a bem, com beijos e palavras meigas. Por duas razões: 1) a capacidade de sofrer desta mulher é indestrutível; 2) um dia vais sentir saudades de ser amado assim, como agora.

NÃO GOSTO DA MÚSICA MAS A MAYSA CANTA "NE ME QUITTE PAS" MELHOR QUE A NINA SIMONE


domingo, 13 de novembro de 2011

FOUCAULT 10, CHOMSKY O


Foucault é um animal bonito, um raro exemplar humano miraculosamente saído da sopa humana que por vezes mais parece uma lavagem de porcos. Admiro-o pela coragem de pensar até àquele limiar em que a metafísica e a fome, a ética e a necessidade, se confundem, deixando perdidos os que ainda precisam dos absolutos que a nossa história produziu: deus, políticos, moral de picha-mole. Estou a simplificar, claro, porque não existe sujeito sem poder, e daí a observação de Foucault relativamente à crença de Chomsky quanto à possibilidade ou obrigação de pensarmos uma sociedade futura justa: não podemos pensar uma sociedade futura justa porque se o fizéssemos estaríamos a fazê-lo com os conceitos de justiça (e outros) que temos e que são o resultado de um jogo de poder de que nos adveio uma subjectividade particular e historicamente determinada [mas podemos resistir ao poder]. Este breve (mas elucidativo) excerto do debate com Chomsky dá pra ver a distância a que Foucault deixa o seu interlocutor, um moço americano simpático, culto, bem-intencionado e ingénuo, à procura de universais e da natureza humana.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011


SEM MAR DENTRO


O mar está sobreavaliado. Não me fascina o seu ruído constante, que para mim é a marca evidente da sua servidão. O mar não deixa de ser mar, apesar das mudanças de cor, da ondulação que embala ou que mata. Oscila entre marés e tem correntes, mas até os peixes, que são estúpidos, as conhecem. Eu sei que a matéria dos peixes os protege e mantém, e que isso é uma forma de inteligência, mas se os peixes têm inteligência é uma inteligência que é igual à do mar, porque é feita de mar, e o mar é apenas o mar, e por isso os peixes são bichos torpes e tu não sais com eles para jantar. São as coisas que não são do mar que o tornam suportável: um barco que naufraga, um polícia marítimo que olha os traficantes de droga e dá ordens e respira apressado. Por isso as ilhas são os lugares mais infelizes do mundo. Por causa do mar. Ela chegou de avião para ser juíza na ilha e ainda trazia um pouco de terra nos sapatos. Ele, polícia marítimo, prendeu-a por toda a vida num barquinho salgado, raspou-lhe as escamas, e o vulcão subiu do mar e sacudiu a água e eles ficaram lá em cima, na lavoura arcaica dos filhos e das sopas, dos sonhos, dos remédios, dos armários, no trabalho dos dias. 


terça-feira, 8 de novembro de 2011

O CRIADO MORDE



O homem faz a história, diz Sartre, as estruturas são ações humanas objetivadas. Claro que depois de fazer a História, as estruturas, o Homem (o homem)  torna-se escravo dela(s). O homem torna-se sempre produto do seu próprio produto (Sartre, ó). O homem cria, transforma, é protagonista histórico. E logo a seguir à criação, como castigo pelo seu desaforo, é criado por aquilo que criou. Foi assim com deus, foi assim com o amor. É assim com tudo. Também a vida que criei – oh quarto altíssimo – desceu cá a baixo e agora morde-me as canelas. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

POSSÍVEL 12ª TESE SOBRE FEUERBACH



A DÉCIMA PRIMEIRA TESE DE MARX SOBRE FEUERBACH

Nas suas onze teses sobre Feuerbach, Marx disse, na 11ª tese

 

“Até agora os filósofos só interpretaram o mundo; a questão é mudá-lo.”


Agora, querido Marx, eu não sei como interpretar-te. Eu não sou tu, e se formos estruturalistas como é que se mudam as estruturas? Se formos mais fenomenológicos, fazemos o quê a partir da consciência e dos seus objectos? E mudar o mundo pra pior, também vale? (olha, no meu caso, as mudanças que fiz sempre me deram cá um prejuízo que nem te conto). A donna haraway, por exemplo, gosta de cyborgs e da sua perversidade polimorfa (a ultrapassagem dos dualismos!). E meter um chip de razoabilidade nas pessoas não seria boa ideia? Ou acreditarmos, e esperarmos, que a educação melhore (ainda que façamos alguma coisa por isso)? Ah Marx, não será a mudança um outro deus, tão pequenino e franganote como o anterior? Diz-me já como é que eu devo interpretar-te, ouviste?

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

SEU ZEN (4)

SE A INTELIGÊNCIA GOVERNASSE O MUNDO, AS MULHERES SERIAM TODAS LÉSBICAS E OS HOMENS DEIXARIAM DE TOMAR BANHO AO SÁBADO.


RC



quinta-feira, 3 de novembro de 2011

LA HABANA (quaselírica para um personagem de Nicolas de Crécy)




Ela perdeu o seu amor, talvez por ser míope (o amor via bem).

Então, ela começou a demorar-se nas sombras, a auscultar-lhe os cuidados (as mãos adivinhavam tudo).

O avançar da miopia trazia-lhe figuras recortadas (tinha vontade de nela meter os pés, como se fosse uma louca).

Era louca, afinal (sorriu e pensou no tal país que nunca veria, um país onde se fumava muito e bebia mojitos) porque acreditava cegamente nas coisas que já não conseguia ver.

Essas coisas – diziam os homens da família (nobres desengonçados e princesas do caruncho) – “são almas que rodopiam em danças daninhas, e que a pretexto delas se esforçam por muito conseguir”.

Ela desentendeu. Abriu as pernas e a visão toldou-se de vez.  

FADO PORTUGAL


o meu país é um jardim feito de mortos,
diria a poetisa (poeta!) da claridade, se estivesse
por aqui e mal-disposta.
olho o meu país e sei que não tem solução (e se tem
eu, sabes piquena, PASSO MUITO TEMPO LÁ FORA!!!
a solução (a cena, a coisa) são pessoas vivas, mas como ressuscitá-las?
Dá muito trabalho (não sei como fazê-lo e, se soubesse,
sou tão preguiçoso). Como fazer um país de mortos?
Vendendo talhões de cemitério aos moribundos? Um país
onde as pessoas viriam morrer?  Morra em Portugal! É barato e não lhe vai fazer mal!
Acho que pode ser qualquer coisa assim (frase tão portuguesa,
não é? “Acho”, mas nunca assumo nada. “Que pode”, porque
tudo pode, cá o Mr. Eu engole tudo (nhanha boa!)! “Ser qualquer coisa assim”,
pois, é isso, agora é que tu disseste 
tudo.




quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A AURA DOS SANTOS



Andam com os cãezinhos pela trela a varrer o caminho, e criam uma força magnética que me afasta os pés, eu quase aos saltos, porque não gosto de ser lambido por animais que depois são tão pródigos que me deixam desossado por dentro (e por fora incisivo). Seguram as crianças pelo cheiro, sabem-no de cor. Descem no elevador a diamantar sorrisos, entra uma e sorri, entra outra e mexe no nenem. Os bacanitos não retribuem os sorrisos e isso torna-se irritante, sobretudo para mim, que nem sempre bom-dio. Já na entrada do prédio, armam o estendal com a sua fortaleza de parideiras efectivas e com resultados à vista. Estendem os minis no pátio, como árvores com o ritual que merecem, e eu quase não desvio a torpeza de ser apenas um.