segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O PENÚLTIMO SEGREDO


O público é uma espécie de broche, pode ser mal feito mas às vezes dá jeito. Se for chinês, chama-se brochim (vem no cinema). No fundo, todos devem estar agradecidos ao público: os bons artistas, porque o público se afasta deles, obrigando-os a satisfazerem-se com sexo  barato; os maus artistas, por outro motivo qualquer (também relacionado com sexo). O que não se deve nunca é ofender o público, obrigando-o a pensar. Tudo bem que o autor saiba mais que o leitor; “mas que ele tenha pensado mais não lhe será perdoado facilmente. O público é inclusive mais inteligente do que o autor culto, pois fica sabendo através de sua revista como a ilha de Corfu se chama em libanês, enquanto aquele teve que consultar uma enciclopédia primeito” (Karl Krauss)

EM ABRANTES TUDO COMO DANTES


“Enquanto a miséria cobre de cadáveres vossas ruas, de ladrões e assassinos vossas prisões, que vemos da parte dos escroques da fina sociedade? os exemplos mais corruptores, o mais revoltante cinismo, o banditismo mais desavergonhado…Não receais que o pobre que é citado ao banco dos criminosos por ter arrancado um pedaço de pão pelas grades de uma padaria se indigne o bastante, algum dia, para demolir pedra por pedra a Bolsa, um antro selvagem onde se roubam impunemente os tesouros do Estado, a fortuna das famílias”.

(in La Ruche populaire, nov. 1842)

Este trecho é citado por Foucault (“Vigiar e Punir”, 2010 (original de 1975), Editora Vozes, pp. 272-273) e acompanhado do seguinte comentário do autor: “…essa delinquência própria à riqueza é tolerada pelas leis e, quando lhe acontece cair em seus domínios, ela está segura da indulgência dos tribunais e da discrição da imprensa”.

domingo, 30 de outubro de 2011


 AUTOCOMISERAÇÃO

[texto de Rogério Soares]


Um passeio pelas redes sociais, esse intrépido passatempo moderno, e logo me deparo pensando em como as pessoas andam modestas. Em todos os lugares das redes elas se confessam a todo instante, politicamente desinteressadas, inteligentemente deficientes, indignas ou incapazes de realizarem qualquer coisa. Ninguém crê ou tem convicção de nada, a não ser de sua própria imperfeição. Elas se vêem sempre como mutiladas. Frases como: “o primeiro desejo da inteligência é desconfiar dela mesma” ou “é preciso coragem para ser imperfeito”, seguido, do clichê socrático, “só sei que nada sei” e “preferia ser um burro para não sofrer tanto”, entulham os perfis ou se somam às mensagens diárias que as pessoas enviam umas às outras. Ninguém quer parecer auto-suficiente. Nos dias atuais isso soa indigno. Vai daí que as coisas andem tão pantanosas como estão. Ninguém tem a mínima convicção de nada. Andam todos em círculos esperando a voz de um líder que os indique o caminho. Com tantas trilhas abertas eu me pergunto o que estão todos ainda esperando para se enfurnarem em uma delas. Sigam as picadas ou desbravem rotas alternativas. Parem de ler manuais de auto-ajuda.

[texto de Rogério Soares]

sábado, 29 de outubro de 2011

TRIP NO PIOLHO (texto de ANTÓNIO PEDRO RIBEIRO)

[texto de antónio pedro ribeiro]

TRIP NO PIOLHO

Sou o maior poeta vivo. Poderia dizê-lo. Ainda estou vivo e não vejo outros melhores. Talvez esteja a exagerar. Mas o que é que me impede? Pelo menos, tal como Pessoa, escrevo a um ritmo frenético. Sou o maior poeta vivo. Bem, morto não estou. A médica fala-me de AVC's e de ataques cardíacos. Mas eu vou prosseguindo a viagem. Mesmo que venham dilúvios eu vou permanecer aqui. A conversa dos outros é a matéria-prima. Gostava das minhas primas mas já não as vejo há muito tempo. Segui o meu caminho. Para alguns, o caminho da perdição. Já me apelidaram de maldito. Os outros bebem e eu não. Não preciso. Estou com o pedal todo. D. Sebastião em Alcacer-Quibir com um exército de fantasmas. Sou o maior poeta vivo. O que ganho com isso? Ninguém paga a minha arte. Continuo a escrever. É isso que sei fazer. Poderia escrever continuamente durante horas e horas. Gasto tinta e papel. Têm um preço. Mas um valor muito superior. Porque raio é que uma maluca qualquer não vem falar comigo? Sou obrigado a ver jogos em cima de jogos? Sou o maior poeta vivo. Ser ou não ser, eis a questão. Só não utilizo palavras herméticas. Dama oculta, vem ter comigo esta noite. Dá-me o teu coração e a tua beleza. Estou no Piolho à tua espera, antes que chegue o chato do costume. Um homem puxa tanto pela cabeça e é esta a recompensa que tem? Estou lúcido como Álvaro de Campos. Pensar é a minha profissão. Passo os pensamentos para o papel. Hoje sou absolutamente capaz de o fazer. Não há limites, ó velhote do boné. No piolho escrevo o poema infinito. Escreverei até morrer. Emendo aqui e ali. Escrita automática et voilá. Eia, Breton, eia, Péret, eia, Artaud. Volto aos surrealistas. Por um lado, ainda bem que as mulheres não vêm. Nem elas nem ninguém. Produzo livremente. Olha, sou um trabalhador da palavra! E esta, ein, ó Fernando Pessa? Um operário da palavra. Um proletário, logo eu. Tantas vezes acusado de preguiça, de desleixo, de vadiagem. Sou vadio mas produzo. Vou montar uma fábrica. Empresário, eu? Deus me livre! E o que é que Deus tem a ver comigo? E o que é que é Deus? Porque se fala tanto em Deus? Deus morreu. Deus nunca existiu. Sou o maior poeta vivo. Bebo copos com ninguém. Estou em tertúlia comigo próprio. Olho as horas. Penso. Todo eu sou pensamento. Mas a miúda da mesa do lado fala. Existe. O velhote do boné também e o Adriano e os outros empregados e o sr. Martins e a Via Láctea e o Universo talvez até Deus
Poderia passar a vida a ler lia, comia, bebia, mijava, cagava e nem sequer fodia porque não me faria falta aliás, acho que se dá demasiada importância ao sexo posso viver como Fernando Pessoa posso julgar-me ao nível dele acho que vou voltar aos crofts e às macieiras há vinte anos em Ofir estava num determinado caminho de excesso a seguir uma via muito própria era único mas depois desviei-me as moedas em cima da mesa chegam para o café as duas miúdas que entraram são engraçadas o ministro das Finanças deprime-me se tivesse a carteira recheada ficava noite fora a beber tive dinheiro em Junho mas fiquei com tonturas por causa dos quadrados e dos rectângulos no chão ouço os meus semelhantes mas eles não me conseguem surpreender porra a merda do café também dá cá um speed imagina se passasse a tomar seis ou sete por dia o que não seria? Passar o dia inteiro a produzir sou o maior poeta vivo sou o pateta da caneta sou aquele que espera e não cai vou parar um pouco vou mijar interromper a obra-prima já disse, não vejo as minhas primas há muito tempo até gostava muito de uma mas enfim, não lhe liguei armei-me em poeta há qualquer droga que me faz escrever assim ou vem tudo da mente? Demente já fui agora sou um cidadão respeitável que vem escrever para o Piolho e que não deixa dívidas há 20 anos andei aqui aos berros por causa do Fidel o Tintin no ecrã o capitão Haddock com mil raios etc e tal chegarei a casa vivo ou desfalecerei exausto de trabalho? Tomai lá, ó obreiristas! Quem me explora? Onde está o meu salário?

[texto de antónio pedro ribeiro]

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O NEGRO DE KUBRICK E O NEGRO DE MECCA


Quem não se lembra daquela parede ou porta negra diante da qual os macacos suspendem a respiração? Aparece em "2001: Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, e impressiona mais por ali estarem macacos e não humanos. Comove-nos a proximidade insuspeitada dos que julgávamos longe. Afinal eles (os macacos) não estão assim tão longe e olham o negro e talvez imaginem uma entrada para outro mundo ou uma parte indescoberta deste.

Não é bem assim – fui rever a cena e no início os macacos fazem um grande cagaçal, só depois é que se aproximam da pedra de forma mais contida, agora entendo: eu tinha gravado na memória a minha reacção àquela inesperada pedra negra. Nova complicação me surge: eu gostei daquela cena pela reação dos outros (os macacos-a-caminho-de-humanos) ou pela minha própria reacção à presença inesperada do objecto desconhecido? Há já pelo menos três elementos: 1) a reacção dos macacos: 2) a minha reacção à reacção dos macacos; 3) a minha reacção ao aparecimento mágico da pedra negra.

Voltando atrás: a cena com os macacos impressiona-nos mais do que se no seu lugar houvesse humanos e isto é assim por via desse longe que subitamente se faz perto - os macacos supreendem-se como nós, humanos, nos surpreenderíamos, e a descoberta desta espécie de irmandade entre nós e os macacos torna-se comovente. Esta comoção pode ser auto-referente: podemos imaginar os macacos como pré-humanos ou antepassados: Os macacos são outros e ao mesmo tempo são nós. A união de pontos distantes no universo gera a comoção, palavra que significa moção ou movimento simultâneo, ou melhor, duas ou mais coisas a moverem-se. Os macacos que olham a pedra negra estão a mover-se em direcção ao desconhecido (os humanos são o desconhecido-pressentido dos macacos, pelo menos numa visão humanocêntrica); os humanos que olham os macacos a olhar a pedra estão a dirigir-se ao mesmo tempo ao passado e às inquietações presentes (há sempre uma pedra negra perto de si).


Entretanto, em Mecca, alguns milhares de homens rezam voltados para uma parede negra, quadrada, uma caixa negra ou um buraco negro. É deus que está lá dentro, ou que não está lá dentro, mas se não estiver lá dentro é a sua enorme ausência que está lá dentro, em todo o seu esplendor de criatura de muitos criadores. Há muito que estes homens substituíram o pêlo pelo frio. É o frio que lhes pede que se juntem assim, quase encostados e com a cabeça no chão para o sangue subir um pouco mais e eles ficarem quentinhos e guardados dentro desse negro tão doce e tão negro.


Download grátis de "2001: A Space Odissey" aqui


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O CASO DO JANTAR INESPERADO NO LEME, RJ


Uma senhora na casa dos setenta aproxima-se de mim e usa palavras parecidas com estas:
- Bom dia, moço, se importaria que eu o convide para jantar?
Olhei a senhora e fui recebido pelo seu sorriso. Até os olhos sorriam, azuis e luminosos. Disse-lhe:
- Pode convidar. Mas eu gostaria de conhecer a motivação da senhora.
Nesse momento estávamos já a caminhar na mesma direcção.
- Fui enganada pela minha melhor amiga, que começou a dar em cima do meu amante. Gostaria de conversar com um homem educado, e o meu marido não gosta de jantar fora.

O jantar estava óptimo e a conversa correu animada. Creio que a idade dela me pesou apenas pela força das convenções sociais. Sabia que o carácter único do nosso encontro contribuía para a compensar da desilusão que me revelou. Eu era o estranho que ela encontrou na rua e aceitou o convite, como outros poderiam aceitar, a partir de agora, porque certamente não se consegue esquecer rapidamente a desilusão causada pela nossa melhor amiga.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

TW Hydrae


Esta bela estrela tem água suficiente para encher milhares de vezes os oceanos da Terra e está a apenas 175 anos-luz de nós. Não sei por que é que estas coisas me interessam. 


A joana serrado (na foto) conseguiu finalmente desatarrachar um post. Eu reparei, e sei que vocês também repararam. É um bocadinho lenta mas não é por mal. 

terça-feira, 25 de outubro de 2011

OS TRAVECOS DA LAPA



A Lapa é o país dos travecos (travestis). Alguns são mais femininos que as minhas ex-colegas da faculdade de direito. Têm os pés um pouco grandes, mas quando não têm chegam a ser mais perfeitos que a Marisa, uma ex-colega minha de direito que tinha os pés grandes. A Marisa tinha tudo pequeno (a boca, as maminhas, o cabelo), excepto os pés. Não podia usar sapatos de tacão porque não os encontrava à sua medida. Simpatizo muito com os travecos da Lapa. São estrangeiros como eu. Talvez um pouco mais, porque eu vivo num território estranho e no caso deles esse território é o corpo. Por outro lado, às vezes a vida deles é mais fácil que a minha, porque eles sempre podem tentar modificar o seu território, ao passo que o Brasil é um corpo demasiado grande e insondável para que eu pense sequer em mudar de sexo. 

STEVE JOBS


Era um chato que só pensava em trabalhar, fazer gadgets e ganhar dinheiro. O meu professor de filosofia do 12º ano é bem mais importante, bem como um certo mestre de yoga do Porto, o Rei do Limão (da Lapa, RJ)  e o senhor que faz francesinhas perto do Marquês, e também esta senhora (acho que é uma senhora mas pode ser um senhor, nunca se sabe)


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

O ZORRO DOS BLOGS


A coisa boa de ter um blog é que não se paga em dinheiro paro o ter (mas paga-se em tempo). Num mundo onde a força política do indivíduo foi anulada num processo que tem na outra face a potencialização da sua inserção produtiva, ter um blog permite-nos ser como pequenos Zorros justiceiros que resgatam ao esquecimento aquelas coisas que nos merecem afecto. Ao partilhá-las com os leitores, estamos a pedir-lhes que legitimem a discreta despensa onde o nosso cérebro guarda aquilo que ainda somos: a nossa memória. Mas que justiça é esta, afinal, que a pretexto de resgatar pequenas pérolas arrastadas para o grande mar das sombras moribundas, visa sobretudo conservar a memória – o corpo – que as carrega?

Leitor hipócrita, é mesmo assim: salvamos sempre a melhor parte de nós. O universo é paradoxal e o pequeno Zorro não tem espada, nem revóver, nem a capa negra que lhe empresta o ar ridículo que todo o herói deve ter. Apenas um computador –  ridículo – e todos os sonhos da internet.

[O pequeno Zorro tem também um blog e com ele deve mudar o mundo…Ou não deixar que o mundo o mude? Enfim, permitam-lhe que adie a resposta para um próximo universo]

Agora ele precisa do tempo pra pendurar a roupa.

[ostra 1: Depressão Total (“Nova Crença”); ostra 2: Lucretia Divina (“Maria”)]

O “ARTISTA”, HOJE


Agora somos todos DJs (disc-jockeys) e VJs (video-jockeys). Já não temos a necessidade de criar alguma coisa (no sentido de criar vigente até ao início da internet popular, e que exigia uma dose de originalidade*; no ready-made de Duchamp ainda havia o esforço de legendagem, agora até disso se prescinde); basta-nos escolher a foto ou a piada ou o texto que queremos que os outros vejam no Facebook e congéneres e pronto: se as pessoas gostarem dão-nos os parabéns (isto é, curtem e laikam-nos). [*Também podíamos dizer que o conceito de originalidade se transformou numa função-selecção]

Somos seleccionadores e respigadores e é assim que nos tornamos úteis na hiper-realidade. Há pessoas que têm blogs onde se limitam a pôr objectos de outros (músicas e fotos, e também textos) e acham isso normal. (E é normal). Querem partilhar os seus gostos e por vezes são generosas. Acho que pensam que podem contribuir para melhorar a humanidade através da difusão de boa música e boas fotos, acreditando velozmente numa contaminação entre ética e estética.

Somos, no mundo virtual, como taxistas que não cobram pelos seus serviços.

Hoje o DJ/VJ traz duas versões de “Pale Blue Eyes”, a original dos The Velvet Underground e a cantada pela menina Marisa (ando com a mania de confrontar versões da mesma música mas isto passa): 


domingo, 23 de outubro de 2011

MISTER BREGA MISS POP


[LÍRICO] Não me falta deus no teu corpo sarado, nem no verão em que ele se perdoa. Não me falta deus na distância entre um campo e o motor da saudade, com os seus olhos e as suas asas e um ventre negro como a morte. Não sou exactamente humano, não me falta deus, não sou exactamente humano. [MENOS LÍRICO] Escuto uma canção simples, brega, diz-se, misturado com pop. Gosto de coisas misturadas, exerço a minha terrível sina: dou-te calor, um calor frio como o aço, examino com requinte o teu comportamento até cair inconsciente, contigo, num poço com muitas voltas antes do fim. [VISÃO] É noite, alguma coisa move-se, uma primeira coisa, feita de nós, uma coisa misturada, merda e suplícios e um pouco de calor, madrugada-quase: trazem-nos um termómetro para eu medir a temperatura do teu cabelo. [BUROCRACIA] Afasto esse mensageiro da Cidade. Antes de o matar, pago-lhe o almoço. Quase sinto pena, parecia feliz, um animal pequeno no estrito cumprimento do dever. Deixo-o. Volto-me para ti. Arranco o prego do coração e atiro-o para dentro de um cão. [MUSIC TIME, UNENDING] Sei tocar piano mas não tenho um piano aqui. É uma canção e eu não sei o que vai acontecer a seguir.



PINÓQUIO DIXIT




“Sou um grande mentiroso mas não é por mal. Está-me no sangue e, além do mais, as pessoas gostam. Há coisas bem piores como, por exemplo, alguém se sentar em cima do meu nariz enquanto eu falo ou, sei lá, ser primeiro-ministro.”

sábado, 22 de outubro de 2011


VERSOS DE AMOR PÓS-MODERNO(S)

1

amo-te
por não ser outro:
é, assim, uma impossibilidade
que nos aproxima

2

é possível
gostar de te pegar nas mãos
e estremecer
mesmo depois de as ter tocado:
sermos tão mutuamente
incompletos

3

E sorrires em mim
a imperfeição do mundo:
vícios, gozo, pequenas quedas

4

cabemos inteiros
no mundo, às vezes
acordamos com os pés
fora da cama:
somos pequenos,
somos tão grandes.

5

exagero o que
não sou para que
gostes mais de mim:
aumentar a probabilidade
de te receber.

6

com asas
demasiado grandes
não se voa: teme-se.
vou a muitos lados,
reuno-te os pedaços.

7

digo o contrário
do que quero
para que no espelho
a imagem não surja
invertida.

8

és única e eu
sou único:
mas nunca somos úni-
cos sozinhos.

9

quero menos ao
lugar onde não estás. mas
viajo, interesso-me,
porque não sei onde um dia
abriremos a casa.

10

às vezes sento-me sozinho
e desconheço ainda mais
o mundo.

11

é a paisagem que nos comunica,
somos pura memória condoída,
comedores de saudade.
ao fim da tarde choramos
estrela branca, de noite os ossos
ligeiramente transparentes.

12

então saímos de nós,
perdemos as mãos
na cidade quente.
chamamo-nos crianças e
subimos ao caule do absinto,
caímos manhã adentro
inchados de sol

13

o tempo é o nojo,
requer-me a pila, o
coração, mia rasteiro
nos olhos a espetar o medo,
alimenta-te do nosso amor,
não te incomodes,
estamos aqui para te progredir,
cão tinhoso do mundo,
um dia vais afocinhar
no teu próprio cu.

14

somos assim,
feitos à mão nas traseiras
de deus, essa boneca de circo
sem orelhas.
ninguém reclamou e
hoje estamos os dois
a descambar a república num
punhado de rum, cumplicidade,
dream-violeta.

15

as limitações do amor
são infinitas.


Rui Costa
in As Limitações do Amor  são  Infinitas (2009)

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

VOCÊ SABE COM QUEM TÁ A FALAR?



A blogaria é o mundo. E tem os seus estereótipos, como ele. Há estilos que se identificam. Respeitemo-los, porque são formas de estar na vida ;) Aqui vão alguns, tal como eu os vejo:

O POST DA MIÚDA QUE QUER SER ESCRITORA E DÁ UMA DE PÓS-CHIC:

Não sabemos se Rilke aprovaria a última capa da Vanity Fair, esse coágulo pós-moderno de anjos reciclados na liquidez do Bauman (volta Batman, eu perdoo-te!). Salomé não se repete, nem eu, excepto quando o porteiro do meu prédio entoa o miserere de Haydn (era o de Schoenberg, prontos) como se fosse esvair-se a meus pés, descalços, percalços e incertos até à Louis Vuitton mais próxima. Disse-lhe: se me deres todas as coisas supérfluas posso muito bem viver sem as essenciais. O homem não se compadeceu e falou-me do steve jobs, ou daquele gadget novo que serve para entupir os domingos com tarantinos e malicks e bolaños e ferreiras, não, não era para acabar assim, não é ferreira que se chama aquele lugar do petit gateau com cara de bâtom existencial para o tédio dos outros, o domingo, a certain wickedness…ou era?

O POST DO TIPO QUE NÃO SABE ESCREVER FRASES GRANDES E ENTÃO FAZ DE CONTA QUE COM FRASES PEQUENAS É QUE É GIRO E TAL:

Quando não tenho nada pra dizer, não digo. Já disse. Agora a sério: pensei em ti. Na tua forma exacta de quebrar o silêncio com os pedidos mais estapafúrdios. Com os peidos. Mais estapafúrdios. Ou seja, o silêncio, tu e eu. E os pedidos. Os meus. Do IKEA não vale a pena falar.

O POST DO TIPO QUE FODE EM LITERATURA:

Há laurindas que desmaiam e têm achaques com as correntes de ar e assim. Eu só fico bezano quando tou mais de duas horas sem dar lustro ao madeiro e então a nhanha acumula-se e sobe-me ao cérebro. É aqui que eu sei que é dia de raimunda (feia de cara e boa de bunda, como dizem os meus imitadores brazucas). Transbordante e pragmático, o meu tesundo aproveita pra caiar a parede da igreja do outro lado da rua, enquanto as beatas do coro afinam as renhecas […]

terça-feira, 18 de outubro de 2011

PROPOSTAS PARA COMBATER A CRISE


1. Proposta terminológica: substituir a palavra “crise” pela palavra “renhanha” ou pela palavra “fenhúncia”, ou ainda por outras palavras do nosso agrado (como “trivela” ou “golo”). As notícias dos jornais seriam outra coisa: “Renhanha vai aumentar!” ou “Mais um golo de Passos Coelho”. Claro que o nome Passos Coelho também teria que ser substituído (sugiro Heidi Bloom).

2. Proposta ainda impossível: Arranjarmos políticos honestos, e em geral os banqueiros e coisas do género deixarem de viver à nossa custa e devolverem o que roubaram.

3. Proposta a la portuguesa: Deixar correr a ver o que é que acontece. Não vale a pena preocuparmo-nos muito com isto porque um dia o sol também vai acabar e ele até é grande como a Angelica Stone e inteligente como o Popeye e no entanto continua a fazer um brilharete e não se queixa.

4. Proposta Pão de Açúcar: Dizemos que encontrámos petróleo na Ribeira do Porto e começamos a vendê-lo. Recebemos o guito e quando eles abrirem os barris percebem que é água (preta) do Rio Douro. Depois nós dizemos que pensávamos que era isso que eles queriam e não devolvemos o dinheiro mas oferecemos-lhes um kit de golfe e continuamos amigos (e tentamos vender o “petróleo” a outras pessoas).

5. Proposta Noruega 90: Vamos todos dormir mais cedo e quando acordarmos fazemos de conta que estamos na Noruega dos anos 90 (mas com sol e mar quente e cerveja Super Bock).

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

MAHLER, COLDPLAY, KOKOSCHKA, ALMA




Não gosto do Mahler que já ouvi (mesmo assim quero ouvir o resto). Acho-o forçado, artificial.

Artificial nem sempre é um adjectivo pejorativo: há pessoas que, vendo flores naturais, exclamam: Ah são tão bonitas que até parecem artificiais!

Prefiro Mahler a Coldplay, no entanto. É engraçado ver como sou tão tolerante que até consigo escrever este nome outra vez: Coldplay.

Alma Mahler (foto acima) foi casada com Mahler mas nunca lhe reconheceu talento. Nem nele nem nos outros maridos que teve (o arquitecto Walter Gropius e o escritor Franz Werfel).

Alma Mahler era uma grande puta e tinha sentido artístico.
Alma Mahler só admirava o seu amante intermitente: Kokoschka.

Reparem como um (o pintor Kokoschka) tem o que falta ao outro (o músico Mahler):



sábado, 15 de outubro de 2011

FILOSOFIA E "FRESCURA": "que alguém olhe para mim e veja o meu corpo, ao invés de se esforçar pra ver a minha alma". Falou!

[texto de Alicia]


Tem momentos em que não caibo no meu corpo. Fica tudo desengonçado. Se me mexo, esbarro em objetos e derrubo coisas. Se não me mexo, esbarro em mim mesma e derrubo-me toda. Palavras dizem coisas erradas. Silêncios gritam coisas esquisitas. Tudo fora do lugar. Cadê a minha faxineira? Tá abandonada, bêbada, em algum canto meu. E em mim, uma bagunça interior, que só vendo. Tudo fora do lugar. Sentimentos esparramados, demandas escorrendo. Alguém me ajuda, alguém me ama, alguém me adora, alguém... me dá uma bronca, por favor? E às vezes é só disso que eu preciso. Que alguém me olhe firme e não entre nesse meu joguinho de seduzir a todos e todas. Que alguém olhe pra mim e veja o meu corpo, ao invés de se esforçar pra ver a minha alma. Que alguém me pegue de jeito, e me tire o jeito. Que alguém me roube o ar e me deixe encabulada. Porque vezououtra eu engulo uma coroa e acho que sou a rainha da cocada preta. Mas é tudo dramatização, é tudo faz-de-conta, é tudo mentirinha. O que eu quero de você é bem simples. O que eu quero da vida é bem pouco. Não que eu saiba o que é que eu quero, longe de mim! Mas sei que é simples. E talvez por medo de conseguir, e talvez pra florear, e talvez pra dar um tanto de emoção, e talvez porque não sei-de-nada, eu complico. Quer facilidade, bem? A solidão tá aí pra isso. Tô aqui pra complicar a sua vida. Porque complicar só a minha é fácil e insuficiente.


[texto de Alicia]

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

SE SE LEMBRAREM DE UM TÍTULO PARA ESTE POST, AVISEM



Voltei a escrever textos que, sendo ficção, acabam por ser motivados pelas disposições que atravesso. São textos de ficção, disse, o que significa que podem ou não “falar” de situações reais. Mas isto de “situações reais” é complicativo, também já sabemos, porque muitas vezes um texto que leio ou uma música que ouço parecem-me mais reais que as pessoas que almoçam ao meu lado em King’s Cross, Londres, todas as quartas-feiras. No fundo, é preciso ser imune a muito lixo que circula à nossa volta, seja em que país for. Desde as bactérias até aos planetas dourados, tudo se move em função dos seus interesses. A uma bactéria pode interessar foder o fígado de uma pessoa que nem bebe whisky, e a um planeta pode interessar influenciar o campo magnético de um corpo celeste simpático, numa sexta-feira à noite, depois de os bares siderais fecharem.

Hoje, desconfio de toda a gente. O mesmo é dizer, acredito em toda a gente. Ou seja: se pretendo evitar uma pessoa ou me sinto atraído por ela, passo algum tempo a analisar os seus interesses. Todas as pessoas encontram uma razão metafísica para justificarem as suas escolhas. As escolhas das pessoas parecem-me sempre muito parciais e localizadas. Por exemplo: partilhas a casa com um vegetariano e ele explica-te a razão que o leva a não sacrificar animais. Mas depois de comer as suas couves e cenouras, essa pessoa vai lavar a roupa na máquina, o que faz duas ou três vezes por semana, usando três ou quatro vezes mais água e electricidade do que tu, que ainda vais comendo o teu franguito e o belo atum. Então a água merece menos protecção do que a galinha? E a luz – ou a forma como ela se obtém - não precisa de ser “salva” tanto quanto o peixe?

Quanto às regras da atracção entre seres humanos, bem, até os cegos vêem. Digam-me quantas moças bonitas e inteligentes vão curtir o próximo fim-de-semana com moços pobres e aleijadinhos, ou vice-versa. Sim, no mundo inteiro, no próximo fim-de-semana. Zero? Só? Ah, parece que existe UMA chinesa que gosta de…

Veja-se esta conversa, e as verdadeiras razões entre parêntesis:

Maria – Já saí muito, agora não tenho paciência [ninguém me convida]
Mauro – Eu também não, acho que perdi a motivação [perdeu foi o cabelo]
Maria – E é sempre a mesma conversa, os homens são muitos infantis, só pensam em sexo [ pensam em sexo com as outras, as popozudas de vinte anos]
Mauro – Uma pessoa com a idade começa a dar valor a outras coisas [aos medicamentos para o reumatismo, por exemplo]
Maria – Sim, há a beleza interior [és um bocado lerdo, não és?]
Mauro – Claro, claro…[beleza interior? posso mostrar-te o meu fígado, ou o pâncreas, pra ver qual é que achas mais bonito]
Maria – E você tá a fim de sair hoje? [e se te deixasses de conversas e me fodesses como se não houvesse amanhã?]

Pronto, era isto. E não se esqueçam do título.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

EVANGELHO


A verdade é que uma boa mentira faz bem a toda a gente. Se eu lhe disser tudo o que sei, além de deixar de acreditar em mim, vai transformar-me num deus ainda mais pequeno, daqueles que têm medo de um dia enfraquecer. Em termos simples: não convém abrir a boca. Não falarás de Curitiba, da forma como um dia te perdeste nessa cidade fundada em 1693 a partir de um pequeno povoado bandeirante. Não saberás que a cidade se tornou uma importante parada comercial com a abertura da estrada tropeira entre Sorocaba e Viamão. Não. O joelho dela continua enfraquecido, subiu a uma alta torre e ficou perdida, olhando o mar, o passado, tudo o que ainda não perdeu. Trata-se da quinta maior economia do Brasil – o joelho dela aproxima-se do chão, acabou de descalçar os sapatos – e conta com diversas inovações urbanísticas: o seu sistema de transportes públicos inspirou o Transmilenio da cidade de Bogotá, na Colômbia.


Está descalça agora, com os pés sujos, a boca levemente indignada, o que me faz sorrir, disfarçadamente, como um menino tímido à procura de tudo o que merece. Não posso continuar assim e é preciso fazer alguma coisa. A hipótese mais popular para a origem do nome da cidade é a de que este derivaria da expressão indígena "curi'i ty(b) ba", que em língua guarani significa "muito pinhão”. Isto faz algum sentido? – pensa, os joelhos no chão, a boca, os seios esfregando o pó. Não te vou responder. A uma cidade nunca se responde. Dorme, acorda, dorme outra vez. Não invocarás em vão o meu nome, puta, até eu chegar.


domingo, 9 de outubro de 2011

ALBA



É assustador. Quando a duquesa se volta para nós, a mão do marido, em estado de alerta, é o rosto da apreensão, o véu de pensamentos que nunca conheceremos. Pode um homem (como ele) amar um corpo assim? Pode, claro. Pode gostar da fragilidade de uma nudez decrépita como outros gostam dos temores de uma virgem? Sim, não seria o primeiro. E o que pensa esta mulher de tudo isto? Será que jaz num torpor semi-inconsciente, uma névoa de maconha com cintilações de oxi, metáforas como mangas ou ovos moles pesados em versos de Góngora? Inclino-me a pensar que sim, considerando a “lata” com que encara, ela, cirurgias tão elementarmente obnóxias. Por outro lado, consigo imaginar a duquesa a pensar calmamente para si mesma: “Pensam que o amo ou me encareço como objecto de amor? É jeitoso, o meu novo marido, e eu gosto do seu corpo nu em cima do meu, ou então eu deitada de barriga para baixo e ele de joelhos a entrar-me por trás. E ele também gosta, o suficiente para que o seu pau se torne adequado”. Imaginando-a a pensar isto, o meu susto inicial esvai-se.



sábado, 8 de outubro de 2011



Certeza

[texto de ana cássia rebelo]

Não é que não goste de Portugal, mas nem a luz de Lisboa me encanta, nem a Amália me emociona, não gosto de pastéis de Belém, nem de desfiada de bacalhau, irritam-me os corações de filigrana e as santinhas flourescentes que se vendem nas lojas da Catarina Portas. Sinto desprendimento na despedida e indiferença no regresso. Gostar a sério, no sentido de pertença, de precisar de um lugar e das pessoas que nele habitam, gosto daquele bocadinho de país que vai de Santiago do Cacém até Sines e, na cidade, daquele outro pedaço de terra que se levanta em desordem e feiura e se estende pela Portela de Sacavém, Olivais e Moscavide. Lá diz o cantor: sou do mundo e sou da cama dos meus pais. Não fora o fardo do amor, educar, alimentar, promover o saudável convívio com a família materna e paterna, e teria fugido para o outro lado do mundo. Ia cuidar dos arrozais de Maina, beber kingfishers pelo crepúsculo, sentir no corpo a luz que atravessa as janelas de carepa, escutar o Rafael falar no alpendre da sua casa, no meio das jaqueiras com bócio.

Mas, mesmo não muito gostando muito de Portugal, mesmo não sentido cá dentro o amor pela pátria, me incomoda a quantidade de pontapés e murraças que se têm dado a este país. Cansa tanta irresponsabilidade, tanta pouca-vergonha. Olhando para trás, para o passado recente, é inevitável perguntar: foi preciso chegar a este ponto para tomar as decisões que há muito precisavam de ser tomadas? Durante todos estes anos, com sucessivos governos, ninguém notou que o país se afundava? Muita gente viu, muita gente soube, ninguém esteve para se chatear. Um - assim se demonstra o disparate da sua governação - criou um ministério para a igualdade cuja essencialidade se provou com a extinção assim que a titular da pasta se cansou da luta; outro, tão cobardolas, preferiu fugir para a comissão europeia, pondo a vaidade pessoal à frente do compromisso com os eleitores; o seguinte, valha-nos deus, não teve tempo para mostrar a sua incompetência; o último foi um caso patológico de megalomania e mitomania. Assim vamos andando.

Porém, pior do que as dúvidas em relação ao passado são as certezas em relação ao futuro. No meio de tudo isto, confusão, angústia, da revolta que tarda em chegar, chega-nos a certeza de que, assim que existir uma folgazinha, assim que sobrarem meia dúzia de tostões para gastar, assim que se deixar de sentir o controlo de quem nos empresta dinheiro, voltará tudo ao mesmo. Ainda muitas rotundas se hão-de construir em Portugal
[texto de ana cássia rebelo]