sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O NEGRO DE KUBRICK E O NEGRO DE MECCA


Quem não se lembra daquela parede ou porta negra diante da qual os macacos suspendem a respiração? Aparece em "2001: Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, e impressiona mais por ali estarem macacos e não humanos. Comove-nos a proximidade insuspeitada dos que julgávamos longe. Afinal eles (os macacos) não estão assim tão longe e olham o negro e talvez imaginem uma entrada para outro mundo ou uma parte indescoberta deste.

Não é bem assim – fui rever a cena e no início os macacos fazem um grande cagaçal, só depois é que se aproximam da pedra de forma mais contida, agora entendo: eu tinha gravado na memória a minha reacção àquela inesperada pedra negra. Nova complicação me surge: eu gostei daquela cena pela reação dos outros (os macacos-a-caminho-de-humanos) ou pela minha própria reacção à presença inesperada do objecto desconhecido? Há já pelo menos três elementos: 1) a reacção dos macacos: 2) a minha reacção à reacção dos macacos; 3) a minha reacção ao aparecimento mágico da pedra negra.

Voltando atrás: a cena com os macacos impressiona-nos mais do que se no seu lugar houvesse humanos e isto é assim por via desse longe que subitamente se faz perto - os macacos supreendem-se como nós, humanos, nos surpreenderíamos, e a descoberta desta espécie de irmandade entre nós e os macacos torna-se comovente. Esta comoção pode ser auto-referente: podemos imaginar os macacos como pré-humanos ou antepassados: Os macacos são outros e ao mesmo tempo são nós. A união de pontos distantes no universo gera a comoção, palavra que significa moção ou movimento simultâneo, ou melhor, duas ou mais coisas a moverem-se. Os macacos que olham a pedra negra estão a mover-se em direcção ao desconhecido (os humanos são o desconhecido-pressentido dos macacos, pelo menos numa visão humanocêntrica); os humanos que olham os macacos a olhar a pedra estão a dirigir-se ao mesmo tempo ao passado e às inquietações presentes (há sempre uma pedra negra perto de si).


Entretanto, em Mecca, alguns milhares de homens rezam voltados para uma parede negra, quadrada, uma caixa negra ou um buraco negro. É deus que está lá dentro, ou que não está lá dentro, mas se não estiver lá dentro é a sua enorme ausência que está lá dentro, em todo o seu esplendor de criatura de muitos criadores. Há muito que estes homens substituíram o pêlo pelo frio. É o frio que lhes pede que se juntem assim, quase encostados e com a cabeça no chão para o sangue subir um pouco mais e eles ficarem quentinhos e guardados dentro desse negro tão doce e tão negro.


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