Quem não se lembra daquela parede ou porta
negra diante da qual os macacos suspendem a respiração? Aparece em "2001: Odisseia no Espaço", de Stanley Kubrick, e impressiona
mais por ali estarem macacos e não humanos. Comove-nos a proximidade
insuspeitada dos que julgávamos longe. Afinal eles (os macacos) não estão
assim tão longe e olham o negro e talvez imaginem uma entrada para outro mundo
ou uma parte indescoberta deste.
Não é bem assim – fui rever a cena e no início
os macacos fazem um grande cagaçal, só depois é que se aproximam da pedra de
forma mais contida, agora entendo: eu
tinha gravado na memória a minha
reacção àquela inesperada pedra negra. Nova complicação me surge: eu gostei
daquela cena pela reação dos outros (os macacos-a-caminho-de-humanos) ou pela minha
própria reacção à presença inesperada do objecto desconhecido? Há já pelo menos
três elementos: 1) a reacção dos macacos: 2) a minha reacção à reacção dos
macacos; 3) a minha reacção ao aparecimento mágico da pedra negra.
Voltando atrás: a cena com os macacos
impressiona-nos mais do que se no seu lugar houvesse humanos e isto é assim por
via desse longe que subitamente se faz
perto - os macacos supreendem-se como nós, humanos, nos surpreenderíamos, e
a descoberta desta espécie de irmandade entre nós e os macacos torna-se
comovente. Esta comoção pode ser auto-referente: podemos imaginar os macacos
como pré-humanos ou antepassados: Os macacos são outros e ao mesmo tempo são nós. A união de pontos distantes no
universo gera a comoção, palavra que significa moção ou movimento simultâneo, ou
melhor, duas ou mais coisas a moverem-se. Os macacos que olham a pedra negra
estão a mover-se em direcção ao desconhecido (os humanos são o
desconhecido-pressentido dos macacos, pelo menos numa visão humanocêntrica); os humanos que olham os
macacos a olhar a pedra estão a dirigir-se
ao mesmo tempo ao passado e às inquietações presentes (há sempre uma pedra
negra perto de si).
Entretanto, em Mecca, alguns milhares de homens
rezam voltados para uma parede negra, quadrada, uma caixa negra ou um buraco
negro. É deus que está lá dentro, ou que não está lá dentro, mas se não estiver
lá dentro é a sua enorme ausência que está lá dentro, em todo o seu esplendor
de criatura de muitos criadores. Há muito que estes homens substituíram o pêlo
pelo frio. É o frio que lhes pede que se juntem assim, quase encostados e com a
cabeça no chão para o sangue subir um pouco mais e eles ficarem quentinhos e
guardados dentro desse negro tão doce e tão negro.
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