[texto de antónio pedro ribeiro]
TRIP NO PIOLHO
Sou o maior poeta vivo. Poderia dizê-lo. Ainda
estou vivo e não vejo outros melhores. Talvez esteja a exagerar. Mas o
que é que me impede? Pelo menos, tal como Pessoa, escrevo a um ritmo
frenético. Sou o maior poeta vivo. Bem, morto não estou. A médica
fala-me de AVC's e de ataques cardíacos. Mas eu vou prosseguindo a
viagem. Mesmo que venham dilúvios eu vou permanecer aqui. A conversa
dos outros é a matéria-prima. Gostava das minhas primas mas já não as
vejo há muito tempo. Segui o meu caminho. Para alguns, o caminho da
perdição. Já me apelidaram de maldito. Os outros bebem e eu não. Não
preciso. Estou com o pedal todo. D. Sebastião em Alcacer-Quibir com um
exército de fantasmas. Sou o maior poeta vivo. O que ganho com isso?
Ninguém paga a minha arte. Continuo a escrever. É isso que sei fazer.
Poderia escrever continuamente durante horas e horas. Gasto tinta e
papel. Têm um preço. Mas um valor muito superior. Porque raio é que uma
maluca qualquer não vem falar comigo? Sou obrigado a ver jogos em cima
de jogos? Sou o maior poeta vivo. Ser ou não ser, eis a questão. Só não
utilizo palavras herméticas. Dama oculta, vem ter comigo esta noite.
Dá-me o teu coração e a tua beleza. Estou no Piolho à tua espera, antes
que chegue o chato do costume. Um homem puxa tanto pela cabeça e é esta
a recompensa que tem? Estou lúcido como Álvaro de Campos. Pensar é a
minha profissão. Passo os pensamentos para o papel. Hoje sou
absolutamente capaz de o fazer. Não há limites, ó velhote do boné. No
piolho escrevo o poema infinito. Escreverei até morrer. Emendo aqui e
ali. Escrita automática et voilá. Eia, Breton, eia, Péret, eia, Artaud.
Volto aos surrealistas. Por um lado, ainda bem que as mulheres não vêm.
Nem elas nem ninguém. Produzo livremente. Olha, sou um trabalhador da
palavra! E esta, ein, ó Fernando Pessa? Um operário da palavra. Um
proletário, logo eu. Tantas vezes acusado de preguiça, de desleixo, de
vadiagem. Sou vadio mas produzo. Vou montar uma fábrica. Empresário,
eu? Deus me livre! E o que é que Deus tem a ver comigo? E o que é que é
Deus? Porque se fala tanto em Deus? Deus morreu. Deus nunca existiu.
Sou o maior poeta vivo. Bebo copos com ninguém. Estou em tertúlia
comigo próprio. Olho as horas. Penso. Todo eu sou pensamento. Mas a
miúda da mesa do lado fala. Existe. O velhote do boné também e o
Adriano e os outros empregados e o sr. Martins e a Via Láctea e o
Universo talvez até Deus
Poderia passar a vida a ler lia, comia,
bebia, mijava, cagava e nem sequer fodia porque não me faria falta
aliás, acho que se dá demasiada importância ao sexo posso viver como
Fernando Pessoa posso julgar-me ao nível dele acho que vou voltar aos
crofts e às macieiras há vinte anos em Ofir estava num determinado
caminho de excesso a seguir uma via muito própria era único mas depois
desviei-me as moedas em cima da mesa chegam para o café as duas miúdas
que entraram são engraçadas o ministro das Finanças deprime-me se
tivesse a carteira recheada ficava noite fora a beber tive dinheiro em
Junho mas fiquei com tonturas por causa dos quadrados e dos rectângulos
no chão ouço os meus semelhantes mas eles não me conseguem surpreender
porra a merda do café também dá cá um speed imagina se passasse a tomar
seis ou sete por dia o que não seria? Passar o dia inteiro a produzir
sou o maior poeta vivo sou o pateta da caneta sou aquele que espera e
não cai vou parar um pouco vou mijar interromper a obra-prima já disse,
não vejo as minhas primas há muito tempo até gostava muito de uma mas
enfim, não lhe liguei armei-me em poeta há qualquer droga que me faz
escrever assim ou vem tudo da mente? Demente já fui agora sou um
cidadão respeitável que vem escrever para o Piolho e que não deixa
dívidas há 20 anos andei aqui aos berros por causa do Fidel o Tintin no
ecrã o capitão Haddock com mil raios etc e tal chegarei a casa vivo ou
desfalecerei exausto de trabalho? Tomai lá, ó obreiristas! Quem me
explora? Onde está o meu salário?
[texto de antónio pedro ribeiro]
4 comentários:
Tão Alvaro de Campos...;)
(By the way: odeio o Piolho. Poeta que se preze vai a um café mais limpinho. Só um bocadinho mais limpinho...)
joana: os maiores não fogem dos clichés, porque não temem ser confundidos com os "menores".
LM: é uma pena, aquilo só fica limpinho depois de o pessoal sair. mas...limpinho no Porto é mais ou menos o quê ;) ?
Ah, carago, agora é que me apanhaste! ;)
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